FATALIDADE

FATALIDADE

 

Era manhã de domingo. Lurdinha acordou sobressaltada com um barulho próximo à janela do quarto em que dormia com a netinha. Espreguiçou-se e ficou em silêncio, a ouvir os rumores que vinham do quintal. Reconheceu a voz da irmã Argentina Maria e levantou-se. A neta dormia os sonhos dos anjos. Acariciou-lhe o cabelo e a beijou, depois abriu um pouco a janela e fez sinal para que a irmã esperasse.

Mal abriu a porta Argentina a abraçou fortemente.

– Dinha, sonhei com você… Um sonho ruim.

– Calma, minha irmã! Venha tomar um pouco de água com açúcar e me conte tudo.

Na cozinha, já mais calma, Argentina narrou o sonho que tivera.

– Eu sonhei que estava no meu quarto e ouvi um forte barulho, semelhante ao de um carro desgovernado… Ou sei lá… O que sei é que o ruído vinha da porta do meu quarto.

Quando olhei não havia mais porta, e vi você entrar no quarto em minha direção.

Lurdinha sorriu da preocupação da irmã.

– Sonhos… São apenas sonhos, irmã. Acalme-se, eu estou bem.

– É que sei que passas por problemas com o Geraldo e me preocupei.

Lurdinha ficou um instante em silêncio. Refletia sobre as últimas palavras da irmã. Estava com dificuldades no casamento. Desde que entrara para o MST, deixou de ser a mulher que Geraldo idealizava para sua companheira. Ele não conseguia aceitar a ideia da mulher participar de tantas reuniões. A forte liderança que ela exercia sobre a gente do acampamento tomava muito do seu tempo, e a afastava do convívio da família.

Ela sabia das reclamações do marido, mas não podia fugir da sua responsabilidade. Era uma espécie de missão. Tinha a liderança nas veias, amava o que fazia. Além do mais, nunca abandonou a família, sempre fora uma mãe cuidadosa e uma mulher exemplar. Conciliava o trabalho pastoral com a vida familiar com equilíbrio. Mas o marido não entendia

assim. Queria a mulher dona de casa, à disposição quando ele a chamasse. Talvez preferisse uma “Amélia”. Lurdinha era teimosa e vivia a se meter em confusão. Enfrentava tudo por aquela gente, ocupava seu tempo com reuniões, treinamentos, rezas e viagens.

A voz da irmã a resgatara daquele momento de melancolia.

– O sonho às vezes é um aviso. Sei que passa por uma crise no casamento e me preocupei. Pensei que brigavam e que precisava de mim.

– Boba! Pare de se preocupar. Não está vendo que estou bem? Agora vou tomar um banho que daqui a pouco o padre Severino passa para nos apanhar.

Era o dia sete de dezembro de 1997. Elas tinham uma reunião de Animadores de Comunidade no assentamento da turma dos 44. Argentina trabalhava na animação das comunidades. Cuidava dos cantos e das festividades, catequizava as crianças e levava a alegria por onde passava.

Desde os tempos do acampamento que a irmã mais nova de Lurdinha realizava trabalhos com as crianças. Era ela quem ensinava religião aos pequeninos. Catequista por

vocação, reunia-os em grupos e os ensinava a rezar e conhecer a Bíblia. Nas celebrações da missa, as crianças participavam com apresentações, leituras da liturgia da palavra e até mesmo nos cânticos. Com seu violão ela animava as diversas comunidades do assentamento – eram oitenta e duas no total, doze delas evangélicas. Bastava ela chegar para que o ambiente se tornasse mais alegre. Possuía uma enorme capacidade de motivar as pessoas e as incentivar para a vida em comunidade.

Com as crianças tinha uma psicologia própria. Mãe de dez filhos, sabia como lidar com elas como ninguém. Nos tantos encontros de catequese que realizou, sua preocupação maior era destacar o valor e o respeito pela terra aos pequeninos. Pregava uma catequese ligada à vida. As crianças são o futuro do assentamento e do próprio movimento, significavam a continuidade e as gerações futuras. A criança de hoje é o jovem de amanhã; sem aprender a amar a terra, o futuro estaria comprometido.

Não deixava passar em branco as datas festivas. Organizava o carnaval e as quadrilhas no acampamento. Reunia e ensaiava as crianças para as festividades. Suas

apresentações haviam se tornado um hábito em todas as comunidades da Reunidas. No dia oito de maio, data dedicada especialmente às mulheres, organizava movimentos onde destacava o valor da participação das mulheres na conquista da terra e na própria formação e ascensão da humanidade.

Corajosa, sempre tomava frente nas passeatas pela reforma agrária e nas ocupações de terra. Antes de participar da Primeira Marcha do MST à Brasília, em 1977, ela comentou com a família:

– Eu nunca vou parar de caminhar. Eu só vou parar de caminhar quando eu não puder mais andar.

E lá se foi, cheia de entusiasmo, para a marcha. Tamanha euforia chamou a atenção da imprensa que acompanhava a passeata. A forma aguerrida com que marchava à frente do grupo, incansável e feliz, era a injeção de ânimo para os manifestantes.

– Ordem, MST, a luta é pra valer.

– Esse é o nosso país.

E seguia a gritar frases e a cantar as músicas que faziam parte do seu cotidiano. A multidão respondia

positivamente aos seus apelos, e animava-se para marchar com mais coragem até a capital federal.

Na rádio comunitária da Agrovila, era locutora do programa “Pé e Fé na Caminhada”, onde toda manhã invadia os lares do assentamento com sua voz expressiva e marcante. Ajudou a fundar a Copajota, em que trabalhava na coordenação e na creche no projeto da ciranda infantil.

Na noite do sábado que antecedeu o sonho que tivera, esteve com a irmã a formular frases que valorizasse o respeito pela terra. De posse de caneta e papel, Lurdinha escrevia tudo o que a irmã dizia. Ela estava animadíssima com o encontro que teriam no dia seguinte na comunidade dos 44. Queria espalhar as frases pelo local e deixar o ambiente todo enfeitado e propício para despertar os participantes à reflexão sobre o respeito à terra que conquistaram.

Num determinado momento, Argentina se voltou para a irmã e fez um pedido que deixou Lurdinha em sobressalto.

– Dinha, se um dia eu morrer, cuida dos meus filhos?

Lurdinha olhou espantada para a irmã.

– Que pergunta, Argentina! Logo você falar em morte? Você que és tão cheia de vida?

– Você ainda não respondeu – continuou ela. – Promete que cuidará deles se me acontecer alguma coisa.

Lurdinha tentou ignorar o pedido da irmã, mas, diante da insistência desta, não teve outra saída a não ser concordar.

– Está bem, prometo… Mas não falemos mais em coisas tristes. Estou te estranhando.

Na manhã do domingo, seguiram com um ônibus cedido pela prefeitura de Promissão para o acampamento dos 44. No encontro estavam presentes o padre Severino, que comandava a Pastoral da Terra na paróquia, e todos os coordenadores do grupo de animação das comunidades.

Argentina estava preocupada com os filhos Geraldo e Claudinei, acampados no Dandará, uma área próxima àquela em que anos atrás acampara com o grupo de Campinas. Havia uma ordem de despejo das famílias do Dandará. Ela temia pelos filhos, sabia que o perigo os rondava. Enquanto o ônibus seguia pela BR 153, ela apertava a imagem de Nossa Senhora nas mãos e rezava em silêncio, pedindo à Virgem sua proteção.

Passaram o domingo em reunião. O padre Severino brincou com ela para que fizesse a palestra em seu lugar. Argentina respondeu:

– Você fala e eu canto.

O encontro terminou por volta das cinco da tarde. No caminho de volta, Argentina e Lurdinha passariam pelo Dandará, onde tinham uma reunião de liturgia com a comunidade que estava se formando no novo assentamento.

Argentina estava com o coração em sobressalto. Á medida em que o ônibus se aproximava do assentamento, ela parecia mais apreensiva. Queria ver os filhos e abraçá-los, saber se estavam bem. Mãe no MST também sofre, o perigo sempre existe, seja por parte do governo ou dos latifundiários.

– Acalme-se minha irmã – sussurrou Lurdinha, ao ver a sua inquietação. – Já estamos perto, os meninos estão bem.

Argentina parecia nem ouvir a irmã. Seus olhos buscavam o horizonte. Já se avistavam as cercas das divisas do Dandará. Mal o ônibus parou no acostamento do lado da pista, Argentina andou em direção à BR 153, para atravessar para o lado onde os filhos estavam assentados. De repente,

ouviu o mesmo barulho com que havia sonhado naquela madrugada. Sentiu que alguma coisa a havia atingido. Seu corpo subiu, voou por alguns metros e depois foi arremessado contra o asfalto duro da BR.

Era tudo silêncio e paz. Não podia mais ouvir os gritos da irmã que tentava socorrê-la. Via apenas uma luz, uma luz forte que a atraía para o seu centro. Ela não queria mais voltar, caminhava na direção da luz com a mesma alegria que caminhara tantas vezes nas muitas estradas do Brasil, em busca de justiça e de terra para sua gente. Havia muita terra ali, em meio à forte luz. Finalmente encontrara a terra prometida. Ouvia aplausos e gritaria, e uma multidão de seres celestiais a acompanhava em seu trajeto. E foi caminhando, altiva, alegre e feliz, que sentiu a luz ficar mais forte. Tão forte que não pôde mais resistir: deixou-se envolver, enamorou-se dela e seguiu ao encontro de Deus, na morada que está preparada aos que acreditam no paraíso.

Lurdinha tentou socorrer a irmã, mas não havia mais tempo. O motorista da caminhonete que a atropelou quase foi linchado pelos acampados do Dandará. O pobre homem não

teve culpa: quando percebeu que uma mulher atravessava a pista, não conseguiu mais frear. Era tarde demais.

Eram sete e meia da noite de sete de dezembro de 1997. Lurdinha e todo o Assentamento Reunidas choravam a morte de Argentina. Uma grande multidão acompanhou seu último adeus. As crianças, amadas por ela em vida, homenageavam a animadora, cantando uma de suas canções preferidas:

 

“Uma casinha bem fechada, uma casinha bem fechada

Abre a janelinha e deixa o sol entrar, abre a janelinha e deixa o sol entrar.

Está trovejando, escurecendo, está trovejando, escurecendo

Feche a janelinha que vai chover, feche a janelinha que vai chover 

Perto da casa tem uma árvore, perto da casa tem uma árvore

E os passarinhos pousam nela sim, e os passarinho pousam nela sim

Perto da árvore tem uma fonte, perto da árvore tem uma fonte

E por baixo dela corre um riachinho, e por baixo dela corre um riachinho.”

 

Suas frases foram transcritas e montadas em uma foto distribuída a todas as famílias da Agrovila. Em qualquer casa que se visite existe uma foto de Argentina com uma de suas frases em defesa da terra e da natureza. Algumas dessas frases fazem parte dos dez mandamentos da terra do MST. Ela tornou-se mártir do movimento, é homenageada em passeatas a nível nacional, e cedeu seu nome a um dos assentamentos da Reunidas.

 

“Eu nunca vou parar de caminhar. Eu só vou parar de caminhar quando eu não puder mais andar.” 

Parte do Livro Terra Prometida do autor (História verídica)     E.L.Nunes